pausas XXVI
Imagem: Bellwether Gallery
«A janela, pequena e sem sacada, é o mundo, e no cimo de uma escada onde tudo range, às cavalitas nas costas umas das outras, nem sempre sabemos quem somos.
- Já vem?
- Vem.
- Desce.
Descemos e recordamos.
Sabemos tudo. Sabemos que, como todas as quintas-feiras de antigamente, don Íñigo de Grandes Ribadavía y Gato, marquês de várias vilas e jurisdições, deterá o seu cavalo diante do nosso convento.
É quinta feira e don Íñigo detém o seu cavalo diante do nosso convento, trepa os muros de argamassa, atravessa o pátio das laranjeiras, percorre o claustro a grandes passadas e introduz-se na cela de uma das noviças. Trata-se de uma menina de uma formosura terna e felina, com uma pele branca que exalava um suave aroma a casca de maçã. Quando a abadesa Violante é alertada, sente um aperto no coração, mas acorre à cela com muito aprumo para esperar diante da porta. Meia hora depois sai o marquês mastigando pêlos, abotoando o colarinho da camisa. Durante uns instantes, a abadessa pousa nele o seu olhar: é um olhar imóvel que o abarca da cabeça aos pés. A seguir agarra-o pelo braço, acompanha-o até à saída com o seu melhor sorriso, de modo que... voltamos a vê-lo por aqui don Íñigo, assim é, abadessinha, pois vá com Deus, com Deus irei, até que o vê virar a esquina em cima do seu cavalo, desaparecer trotando pela ruela.
Então, abrindo passagem entre nós aos empurrões, a abadessa regressa à cela.
Ali, deitada no seu catre, está a noviça, o hábito de burel áspero arregaçado até à cintura e movendo como tesouras as pernas levantadas, enquanto, sim, não, bem-me-quer, mal-me-quer, desfolha a margarida que o marquês lhe entregou. Ao ver a superiora na porta, soergue-se rapidamente. Diz:
- Não sabia que...
E a superiora responde-lhe:
- Mas há muitas coisas que tu não sabes.
Então agarra-a pelos cabelos, açoita-a até a deixar rouca, arrasta-a até ao refeitório e fecha-a à chave. O que acontece a seguir também sabemos, presenciámo-lo durante muito tempo: a abadessa sái para o pátio, mata duas galinhas e faz canja para o jantar, ocupa-se das hóstias sem consagrar, planta uma laranjeira nova, passeia sem rumo com a carretilha vazia, janta, bebe uma garrafa inteira de vinho, faz exercícios de cravo, reza ao céu para que no convento não instalem rodas e locutórios, e retira-se para dormir.
Na solidão da sua cela, leva as mãos à cara e deixa que as lágrimas lhe resvalem pelos dedos.»
Cristina Sánchez-Andrade - "Os Demónios do Convento"
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