1.8.07

projecto de valorização do mosteiro de santa clara-a-velha

Carne caprina era a favorita das clarissas de Santa Clara-a-Velha
É mais uma página que se escreve na história do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha. Técnicos do IGESPAR descobrem hábitos das clarissas, pesquisando lixeira, e traçam a evolução do território, através da análise de lodos provocados pelas cheias do Mondego, pelo menos, durante cinco séculos
O Dinis e a Clarissa já se habituaram à azáfama arqueológica. Uma espécie de guardiães do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, este casal de cães rafeiros não estranha as presenças e até acompanha de perto os trabalhos que, dia-a-dia, ajudam a desvendar a história daquele espaço e como ali se vivia. E, para já, é possível perceber que os hábitos alimentares das monjas privilegiavam a carne de ovicaprinos.
Até ao momento, a pesquisa da bióloga Cleia Detry, do Centro de Investigação de Paleoecologia do IGESPAR (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico), revela que 60% dos ossos encontrados pertencem a mamíferos ovicaprinos, sendo que os que estão identificados são de ovelhas, que não teriam mais de dois anos.
Sabe-se, recorda Artur Corte-Real, coordenador do projecto de valorização de Santa Clara-a-Velha, que, há séculos atrás, muitas pessoas pagavam as rendas com ovelhas, daí, talvez, a presença maioritária desta espécie na lixeira do mosteiro. Mas, os hábitos das freiras iam além. Entre o diverso material orgânico e ossos recolhidos, percebe-se que também degustavam carne de vaca e de porco.
Não faltam igualmente cascas de ovo, muitos deles, provavelmente utilizados na confecção de doces conventuais, e crostas de berbigão. Em suma, «encontramos aqui o que saiu do pratos das pessoas», explica ao Diário de Coimbra a bióloga, especialista em arqueozoologia, sublinhando que os dados recolhidos no terreno serão agora comparados com a informação que consta dos documentos.
Um trabalho minucioso, que exige paciência e nada de pressas, não acaba naquela sondagem onde a equipa passa várias horas à procura de vestígios do passado. É no laboratório que será possível encontrar todas as conclusões deste estudo, ainda na fase preliminar.

“Filme” do território pelo estudo de lodos
Uma das muitas escavações arqueológicas “obrigou” a equipa de botânica a entrar em campo mais uma vez. Um corte geológico colocou a nu um caminho que se julga do século XIV e as marcas de inundações de vários séculos. Em dois dias, Paula Queiroz e José Mateus, do IGESPAR, recolheram amostras de várias camadas de lodo «cheios de matéria orgânica e poléns».
Por incrível que possa parecer a quem não domina a matéria, a partir dessas marcas deixadas pelo Rio Mondego, é possível fazer «o filme da evolução de todo o território», explica Paula Queiroz, salientando que os dados revelarão especificidades de áreas a quilómetros de distância do convento.
A olho nu, a pedra na entrada de Santa Clara-a-Velha mostra também em que contexto essas cheias ocorreram. Por um lado, notam-se vestígios de fases «mais dinâmicas» do Mondego, em que «a água veio com muita força e deixou marcas de deposição». Por outro, percebe-se uma maior acalmia nas camadas que poderão datar desde o século XIV até, pelo menos, ao século XIX.
A mesma equipa estudou há uns tempos os lodos do claustro do mosteiro, desvendando grãos de pólen de toda a região, plantas aquáticas, colónias, lentilhas, nenúfares, algas e salgueirais. O material recolhido no corte geológico, onde cada centímetro conta uma história, vai agora para análise. Só depois será possível abrir o livro de mais uma história de Santa Clara-a-Velha.

Para além da valorização do convento
Estes são dois exemplos dos trabalhos que decorrem em simultâneo com a valorização do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, onde as máquinas não param. «O grande objectivo é fazer uma investigação que, normalmente, passa despercebida aos arqueólogos. Tratando-se de um sítio arqueológico, em que a arqueologia está presente desde o primeiro ao último dia, não há uma pedra, uma terra que se mova sem a presença dos arqueólogos», frisou Artur Corte-Real.
No entanto, «entendemos que devíamos ultrapassar um bocadinho mais», continuou, realçando que, através do Centro de Investigação de Paleoecologia, se tem produzido «informação importantíssima para compreendermos como se vivia neste mosteiro».
No entender do coordenador do projecto, as lixeiras, por exemplo, são depósitos de informação de que, no quotidiano, nem nos apercebemos. «A maior parte das pessoas não sabe que aquilo que está no seu caixote do lixo é a sua vida; se o entregarem a um observador é possível desvendar a vida toda: o que come, que vícios tem…», continua Corte-Real, realçando que o que se está a fazer no mosteiro é recolher o que consta desses «recipientes históricos e conseguir transformar isso em vida, em informação».
«Porque os públicos, quando vierem aqui, vão pretender saber quem viveu, como viveu, o que comiam, como vestiam, se choravam, se rezavam, se tinham outras coisas para além da religiosidade», adianta.

Edifício concluído ainda este mês
Projecto conta com “empenho e dedicação de pouca gente”

O espaço museológico que está a ser construído no edifício de raiz junto ao Mosteiro de Santa-a-Velha ficará concluído ainda este mês, garante Artur Corte-Real. «Até Dezembro/Janeiro terá já a estrutura montada e organizada», para abrir ao público ainda no primeiro trimestre de 2008.
Neste momento, o processo de extinção do IPPAR e a sua integração no novo IGESPAR levanta algumas preocupações do arqueólogo, que lamenta o «empenho e dedicação de pouca gente» no projecto. «Os recursos humanos são, absolutamente, fundamentais. O futuro deste espaço tem de ser definido antes do início da abertura ao público. É fundamental pô-lo a funcionar e dedicá-lo à cidade, porque tem uma multiplicidade de obrigações e compromissos com a cidade», refere.
Projectado pelos arquitectos Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez, o edifício, onde será colocado o material recolhido, pretende ser um espaço de contemporaneidade, um centro interpretativo, que estará em articulação com a antiguidade do mosteiro.

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